31/10/2019 - Notícias
A imprensa mundial especula sobre o paradeiro do cientista chinês Dr. Jiankui He, que chocou o mundo ao anunciar, na semana passada, o nascimento dos primeiros bebês humanos geneticamente editados, as gêmeas Lulu e Nana.
O pesquisador anunciou, às vésperas da Second International Summit on Human Genome Editing, em Hong Kong, que utilizou a técnica de edição genética CRISPR-Cas9 para modificar os embriões de sete casais em tratamentos de infertilidade. Seu objetivo era inativar os receptores do vírus HIV na célula, impedindo a entrada do vírus e tornando os embriões imunes ao vírus. Segundo o cientista, as gêmeas são os primeiros bebês fruto dessa experiência – Dr. He não foi visto em público desde então.
O anúncio inesperado atingiu a comunidade científica mundial com a força de um tsunami. Sob o impacto da declaração de Dr. He, os cientistas que participariam do encontro científico afirmaram que a ciência precisa ser o mais eficaz e segura quanto possível, e que era “irresponsável” usar a edição germinal em um cenário clínico.
“Vejo isso como um daqueles momentos que acontecem uma vez a cada poucas décadas, em que alguém faz algo que muda drasticamente a paisagem e o mundo nunca mais será o mesmo”, disse à CNN o Dr. William Hurlbut, médico e pesquisador sênior do Departamento de Neurobiologia da Stanford Medical School, nos Estados Unidos.
“Estamos na era da engenharia genética germinativa”, afirmou o Dr. William à emissora norte-americana.
O episódio colocou o arcabouço regulatório da ciência praticada na China na berlinda. O Dr. He teria feito o experimento sem o conhecimento daUniversidade de Ciência e Tecnologia do Sul, na cidade deShenzen, onde trabalhava. Pelo menos foi o que um porta-voz da universidade se apressou em comunicar à imprensa, informando que o pesquisador estava em licença não remunerada desde fevereiro, e que ninguém da instituição sabia o que ele estava fazendo. O governo chinês também se isentou de qualquer responsabilidade. Em declaração à rede estatal de televisão CCTV, o vice-ministro de Ciência e Tecnologia, Xu Nanping, disse que o ministério se opunha fortemente aos experimentos reivindicados pelo pesquisador, agora suspensos. Além disso, a Comissão Nacional de Saúde da China declarou que irá “investigar seriamente e verificar” as declarações do cientista.
Ainda que o governo e a universidade tenham se eximido, é de se estranhar que o Dr. He tenha escapado dos radares das autoridades chinesas. O país é conhecido pelo monitoramento de dados na internet e pela extensa vigilância, feita por milhares de câmeras de segurança instaladas na imensa Shenzen, onde o cientista mora. O desconhecimento oficial sobre esse trabalho parece ainda mais improvável, considerando que o cientista foi atraído de volta ao país por um programa criado pelo governo para recuperar talentos, e era beneficiário de uma bolsa de estudos concedida também pelo próprio governo chinês. O Dr. He estudou biofísica na Rice University e fez doutorado na Stanford University, ambas nos Estados Unidos. Em 2012, aceitou a oferta de financiamento de pesquisas e apoio para moradia e educação de sua família para retornar à China, instalando-se em Shenzen.
Apesar do desaparecimento do cientista, as repercussões do seu trabalho estão sendo debatidas em toda parte.
“Ele não trouxe novidade nenhuma. Meu laboratório usa essa técnica em animais. O grande diferencial foi ele ter feito em embriões que seriam implantados, o que fere princípios éticos já estabelecidos, de que não se faria edição genética em embriões enquanto não houvesse segurança da técnica”, disse a Dra. Mayana Zatz, bióloga, Ph.D. em genética, professora titular de genética humana da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da universidade. Ela acredita que o trabalho, ainda não publicado, não será aceito por nenhuma revista científica de peso.
“Não foi e nem será. Estudos científicos precisam ser aprovados por comissões de ética e revisados por comitês independentes de cientistas. Nada disso ocorreu nesse estudo”, disse a especialista.
A principal crítica ao uso da CRISPR-Cas9 para edição genética de embriões humanos é o fato de não ser específica, podendo afetar outros genes além do escolhido como alvo.
“Pode dar um erro. É como uma bala perdida, com consequências imprevisíveis”, explicou a geneticista. A situação fica mais complexa considerando que a criança vai carregar essas alterações para o resto da vida e eventualmente transmiti-las aos seus descendentes.
A maioria dos estudos em andamento aplica a CRISPR-Cas9 em modelos experimentais. Na UCSD, o Dr. Alysson testa o método em mini cérebros criados a partir de células-tronco de crianças com transtornos do espectro autista. Centros como a Universität Wien, na Áustria, a Stanford University e aHarvard University, ambas nos Estados Unidos, também trabalham com esses modelos, conhecidos como organoides.
“Estamos usando a CRISPR-Cas9 como ferramenta de reversão genética de neurônios em mini cérebros, com o objetivo de um dia aplicá-la em humanos usando terapia genética”, disse o Dr. Alysson, que edita os genes para eliminar as mutações relacionadas a doenças como a síndrome de Rett ou as formas de autismo geneticamente definidas. Depois, uma série de ensaios avalia se a correção genética funcionou para consertar o neurônio e se houve efeitos colaterais.
Em geral, esses testes mostram a ocorrência de muitas alterações indesejadas, as off target, durante o processo de edição genética, disse o pesquisador.
“Por isso, quando o cientista chinês declarou que nada se alterou no genoma no experimento dele, posso dizer que isso não é verdade. A gente sabe que há alterações e descobri-las depende do quão rigorosa é a análise. O que não sabemos é se serão importantes ou não”.
Um dos receios dos especialistas em relação ao trabalho do Dr. He é que a inativação do gene CCR5 possa levar a uma maior vulnerabilidade a outras infecções, como a gripe e o vírus do Nilo Ocidental, por exemplo.
Muitos avanços têm sido feitos por meio de experimentos em animais. Na USP, por exemplo, a Dra. Mayana conseguiu identificar um gene importante na distrofia muscular de Duchenne, doença que estuda há 40 anos, a partir de estudos com cães que não produziam a proteína distrofina, fundamental para manter a fibra muscular inteira. Recentemente, pesquisadores modificaram o gene produtor dessa proteína em embriões, dando origem a animais que nasceram com a proteína.